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'Vamos levar a cardiologia moderna a países pobres'

Primeira mulher a chefiar órgão continental, brasileira quer atenção a doenças negligenciadas na América Latina


Karina Toledo - O Estado de S.Paulo

ENTREVISTA - Marcia Barbosa, presidente eleita da Sociedade Interamericana de Cardiologia

Pedro Vilela  
Quando a médica mineira Marcia Barbosa decidiu fazer residência em cardiologia, no início dos anos 1980, a especialidade era dominada por homens. "Mulheres só podiam ser pediatras ou ginecologistas", conta. Enfrentou o preconceito, sacrificou a convivência com os filhos e tornou-se a primeira mulher a presidir a Sociedade Mineira de Cardiologia. Agora, aos 56 anos, ela será a primeira mulher a assumir a presidência da Sociedade Interamericana de Cardiologia (Siac), entidade que reúne cardiologistas de todos os países do continente americano.
Preconceito. A cardiologista Marcia Barbosa: ‘Mulheres só podiam ser pediatras ou ginecologistas’  

A eleição foi em março deste ano, mas Marcia assume o posto apenas em 2013. Entre suas metas estão investir no levantamento de indicadores - que mostrem a prevalência das doenças cardiovasculares nos diversos países americanos e a forma como elas estão sendo tratadas - e no desenvolvimento de diretrizes para diagnóstico e tratamento de doenças típicas de países tropicais.

Qual é o papel da Siac e qual é a importância de ter um brasileiro na presidência?

Até agora, a Interamericana tinha se preocupado mais em realizar congressos e debater questões científicas. A gestão atual já tem começado a investigar a prevalência de doenças cardiovasculares nos países americanos. Muitas vezes temos de trabalhar com números europeus ou norte-americanos, que não representam nossa realidade. Mas achamos que ainda é preciso fazer mais. Por isso a vontade de ter um brasileiro.

Por quê?

A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) tem experiência na publicação de diretrizes. Também tem boa interatividade com o governo, para auxiliar, por exemplo, na escolha dos medicamentos que serão oferecidos pelo sistema público de saúde. Podemos levar essa experiência a países menores, onde a cardiologia é menos estruturada, e aproveitar também as boas experiências de outros.

Que tipo de diretrizes serão priorizadas?

Ano passado, a SBC coordenou a elaboração de uma diretriz sobre a doença de Chagas. Especialistas de vários países da América do Sul foram convidados e vamos publicar um documento conjunto, que será traduzido para o espanhol e para o inglês para que todos os cardiologistas tenham acesso. São recomendações de como fazer o diagnóstico e como tratar o problema, feitas com base em evidências científicas. A diretriz de Chagas foi a primeira feita em conjunto. Agora, a SBC vai editar uma diretriz sobre valvopatias (doenças que afetam as válvulas do coração). Esse assunto tem questões bem peculiares aos países em desenvolvimento, que não são contempladas pelas diretrizes europeias ou norte-americanas, como é o caso das doenças reumáticas.

Como assim?

Por exemplo, se você tem um reumatismo quando jovem e não trata adequadamente, a bactéria pode danificar uma válvula no coração. Isso pode evoluir para um problema sério no coração, de alto custo para saúde pública. Essa é uma causa importante de doença em válvula nos países em desenvolvimento, típica de pessoas pobres, que moram em locais com grandes aglomerações e sem acesso à medicina de qualidade. Com a vitória na eleição, sugeri fazer isso em nível interamericano.

Tem outras doenças negligenciadas?

Além de Chagas e das doenças reumáticas, existem algumas miocardiopatias (doenças do miocárdio - o músculo do coração) que são típicas de países tropicais. Além disso, algumas doenças tropicais, como esquistossomose, podem causar problemas cardíacos.

É a primeira vez que um brasileiro assume o posto?

Já houve um brasileiro antes, mas é a primeira vez que uma mulher é eleita, pois o mundo da ciência é bem machista. A gente trabalha em horário integral, e é difícil para uma mulher ter disponibilidade para militar na área acadêmica. Por isso tem menos mulheres, embora sejamos tão competentes quanto os homens.

Como fez para conciliar vida familiar, acadêmica e trabalho?

Sou casada há 32 anos e tenho dois filhos, de 25 e 22 anos. Foi muito difícil no início. Sou de uma geração que ainda tinha um grande preconceito contra mulher cardiologista, até para entrar na especialização. Mulher poderia ser pediatra ou ginecologista. Hoje isso não existe mais. Percebi que teria de fazer mais do que um colega homem se quisesse chegar no mesmo nível. Desde o início me dediquei muito à profissão. Claro que isso teve um prejuízo grande para a família. Não vi meus filhos crescerem. Mas tive apoio incondicional de meu marido, muitas vezes ficando ele sobrecarregado. Graças ao apoio da minha família, pude me dar ao luxo de militar na área acadêmica, coisa que poucos médicos hoje no Brasil conseguem. O médico está muito preocupado em sobreviver.

A senhora se arrepende dessa opção?

Eu acho que fui uma mãe razoável, pois o pouco tempo que eu tinha dedicava integralmente para os meus filhos. Mas sou e sempre fui uma péssima dona de casa. Não me arrependo, valeu muito a pena. Jamais imaginei que a medicina me daria o tanto que ela me deu. Mas, claro, existe um preço.

Pretende concorrer à presidência da SBC?

Várias pessoas falam que está na hora de ter uma mulher presidente na SBC. Mas não daria para conciliar com a presidência da Interamericana. Além disso, todos os cargos que tive na SBC foram na parte científica. A ideia de lidar com números e questões administrativas não me agrada. Estou em uma fase da vida em que quero dedicar mais meu tempo a questões sociais.

Doença cardiovascular no Brasil é uma das principais causas de morte. Como mudar isso?

Em primeiro lugar, é preciso conscientização. Os dados são assustadores: 50% das pessoas nem sequer sabem que têm pressão alta ou são diabéticas. Além disso, entre aqueles que sabem que são portadores dessas condições, tem um grande porcentual que não se trata adequadamente por falta de informação e de condições médicas adequadas.

Como esse cargo na inter pode ajudar?

Principalmente pela troca de experiências. O Brasil tem um caso de sucesso que é a campanha contra hipertensão Eu Sou 12 Por 8. Pode ser que o Paraguai, por exemplo, tenha outro caso de sucesso. Ações de prevenção devem ser prioridade para países em desenvolvimento.

QUEM É

Médica especializada em cardiologia. Atual vice-presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e presidente eleita da Sociedade Interamericana de Cardiologia (Siac). Foi presidente da Sociedade Mineira de Cardiologia entre 2004 e 2005 e do Departamento de Ecocardiografia da SBC entre 2008 e 2009.


Fonte: O Estado de S.Paulo - http://www.estadao.com.br/

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